Quem sou eu

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Recife, PE, Brazil
É kinda pretensious dizer que se é artista. Sou menos artista que Bukowski ou Fernando Pessoa. Sou mais artista que Gianechini ou Debora Seco... Somewhere in the middle. Sou atento ao mundo e busco sempre descrevê-lo de alguma forma e com algum tom de lirismo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Marriage

Não transavam mais.
Seguiam a vida normalmente. Trabalho. Pegar os filhos na escola.
Conversavam sobre as contas, os impostos, o casamento de uma sobrinha...
Ele dormia às vezes com uma moça do trabalho que queria crescer na empresa.
Não transavam mais.
Deitavam-se um ao lado do outro, diziam boa noite e apagavam as luzes.
E, no entanto, durante o dia, olhavam-se.
Nunca ao mesmo tempo. Na busca perene por uma explicação.
Algo havia sido perdido. O que?
Ele sabia que nunca sentira por ela tanto carinho como agora. Mas nunca havia sido tão incapaz de demonstrá-lo.
Não sentia desejo por ela.
Desejava senti-lo, mas não sentia.
Não sabia ao certo...
“Rex não quer ser alimentado, ele quer caçar”.
Desculpa que o fazia levar seus dias na ausência de explicação.
Que tormento esse o de não querer estar com quem se quer estar.
A liberdade tolhida. Isto o matava.
Pensou em largar tudo e procurar outra. Outra vida.
Mas não era isso que queria. Queria querer o que tinha.
Chegou o dia do vigésimo ano de casamento.
Encontraram-se na cozinha no final do dia.
Ele pensa em comentar algo sobre o dia especial. Não... Ela nem deve estar lembrada.
Ela pensa em comentar algo sobre o dia especial. Não... Ele nem deve estar lembrado.
Quer macarronada? Eu esquento pra você no micro-ondas. Quero.
Ela pega o prato na geladeira e aproxima-se dele, que está ao lado do aparelho.
Um minuto e trinta segundos de aquecimento.
Um minuto e trinta segundos de silêncio.
Meio metro de distância.
E se eu pegar sua mão agora?
E se eu lhe der um beijo?
Queria querer...
Bip, bip, bip, bip...
Ele senta à mesa com o prato.
Senta aí.
Ela senta.
Silêncio.
Apenas o grunhido da mastigação.
Lívia passou na prova. Eu soube.
Mais tarde no quarto, os dois de banho tomado e perfumados.
Luzes das cabeceiras acesas.
Olham-se.
Olham-se...
Boa noite,
Boa noite.
Apagam-se as luzes.

domingo, 5 de setembro de 2010

Quarto de noite.
Marília e Carlos.
Os dois estão deitados, um de frente para o outro.
Marília está de roupa de cama e Carlos está de roupa de rua. Calça jeans, sapatos e casaco de lã.

MARÍLIA – Acho que estou gostando dele, Caco.
(pausa)
CARLOS – É?

É. Ele parece com você.

 Pra variar...

(Marília dá uma risadinha e pergunta:)
Que foi?

Eu não disse nada.

Eu sei o que você está pensando. Toda vez é a mesma coisa.

Não to pensando em nada...
(pausa)

Ele é bem apaixonado pelas coisas. Assim como você era...

Quem te disse que eu não sou ainda?

Não sei. E nem quero saber.
...
Ele tava me explicando o procedimento de serialismo na música de Stravinsky o outro dia.

Ele é músico?

Não... Se formou em ciências contábeis.

Pff...

Que foi? Nem todo mundo precisa fazer artes para ter algum valor.

Não disse nada.

Mas pensou.

Pensei.
(Marília olha para Carlos, enfadada)
Às vezes o jeito que ele olha para mim me faz lembrar de você.
Uma expressão que ele faz assim.. Quando me beija...

Você se lembra do meu beijo ainda?

(Marília faz cara de reprovação)
Você é um idiota.

(mudando de assunto:)
Mas então é isso? Você está apaixonada por esse cara?

Apaixonada não.
(pausa)
Nunca mais estive apaixonada desde você.

(Carlos sorri)

É isso que você quer ouvir não é?
Pois é isso mesmo. Mas não ache que eu gosto disso.
Isso vai mudar já já.
E você nunca mais vai estar aqui na minha cama.

Eu só estou aqui porque você quer.

Eu não quero.

Porém cá estou...
Não vem me dizer que você preferia estar com o outro tapado que decora a primeira frase do Wikipédia de algum compositor erudito para bolar na sua frente.

Achei bonitinho...

E ele nem se deu o trabalho de ver seu orkut para saber que teria sido muito melhor falar de Louis Prima ou de Leonard Cohen.

(Marília, em silêncio, olha para o nada)

Ele escreve sabia?

Ah é?

Poesias...
Ele é muito sensível.
Outro dia fez uns versos para mim.

(Carlos, satirizando:)
“Como são belos seus cachos de mel, dá-me vontade de lhe oferecer o céu...”

Idiota!

É algo diferente disso?

Não é nenhum Paulo Leminsky. Mas é bonitinho.

Marília, por que eu estou aqui?

(pausa)
Não sei.

Não sabe?
Por que eu estou aqui? Hoje e todos os dias?
Por que passo horas ao seu lado sem você conseguir dormir?

Não sei! Não sei!

Eu acho que sabe.

Não sei não!

Você me busca em todos os seus paquerinhas medíocres, passa a vida lutando para fazer com que eu não apareça em suas noites solitárias mas, por um motivo qualquer, estou eu sempre aqui de novo...
Você me quer Marília.

Não!
Não depois daquilo...

Aquilo foi um erro que qualquer um pode cometer, Marília.

Não!
Não você! Não comigo!

Eu lhe pedi desculpas.

Não quero saber. Nunca mais vou me encontrar com você.
Você me machucou.

(pausa)
(Marília está séria e triste)
(Carlos:)
“Come Rain or Come Shine...”
Você se lembra?

(Marília não responde nada. Está séria)

(Carlos toca um piano imaginário)
I´m gonna love you
Like no one loved you
Come rain or come shine…
But don´t never leave me
Cause I´m gonna be true
Well, if you leave me
You ´re gonna love me
Like no one loved me
Come rain or come shine…

(Ao fundo “Come rain or come shine”)
(Carlos, murmurando:)
Sabe que Ray Charles escreveu essa música... Ele tava sofrendo porque sua amada não queria mais saber dele pois ele havia tido outra. Ele não se cansava de dizer para ela que a outra não significava nada para ele. Nada. Que tudo o que ele queria na vida era poder tê-la em seus braços sempre e sempre. Esquecer qualquer desavença. Pensar no futuro. Nos filhos que haveriam de chegar um dia. Na família linda que eles seriam...
(Carlos tenta abraçar Marília)

(Marília desvencilha-se)
Mentira.

(Carlos deita-se para cima e olha para o teto.)

Você é teimosa, Marília.
O que eu estou falando é tudo o que você quer que eu fale.

Não. Não...

Você devia tirar essa capa de proteção que você mantém em volta de você.
Você devia pensar no que você realmente tá querendo.

Pára de falar.

Você me quer, Marília.
E eu quero você também.

Pára!


(Marília chora. A música rasgada continua ao fundo)
Você nem veio me procurar mais!
Nem sequer para se desculpar! Nem sequer para me dizer que não me queria mais!
Como é que eu fico?
(Ela soluça)
Do nada você some! Do nada você começa a aparecer com ela nos cantos.
Nossos amigos todos... Ninguém entendeu! Eu não entendi!
(aos prantos:)
A gente era tão bonito...
Tão bonito...
(chora... chora...)

(Carlos olha para ela com frieza)
Eu deixo ela.
Eu fico com você.
Só você conta pra mim.

É sério isso?
Você quer mesmo?

É sua imaginação, meu bem...
Eu quero o que você quiser...

(tempo...)
(Marília olha para Carlos intensamente)
(voltando a chorar:)
Eu quero!
Quero você pra mim! Só pra mim!

(Marília abraça Carlos bem forte)
(Marília está abraçada a um travesseiro. Não há mais ninguém em seu quarto. Marília chora.)